De tudo o que é novo nasce um novo prazer,
mas eu sei que não é boa a jovem morte.Ela fere pelas costas, e não é doce como o açúcar,
nem é como o vinho, nem como o sumo das uvas.— AL-HOUTAY’A, “Tudo o que é Novo é Belo”, in O Bebedor Nocturno: Poemas Mudados para Português por Herberto Helder
A Beleza do Novo
Conversations 1
The inaugural issue of Conversations: The Journal of Cavellian Studies, which I co-edit with Amir Khan, has now been published. We are grateful to the University of Ottawa for supporting this project. The contents may be downloaded here or, alternatively, here:
“Genesis: Editorial Comment”, Sérgio Dias Branco and Amir Khan
“Me, Myself and Us: Autobiography and Method in the Writing of Stanley Cavell”, Timothy Gould (Metropolitan State University Denver)
“A Scarred Tympanum”, Chiara Alfano (University of Sussex)
“Medium and the “End of the Myths”: Transformation of the Imagination in The World Viewed”, Daniel Wack (Knox College)
“Stanley’s Taste: On the Inseparability of Art, Life, and Criticism”, Sebastião Belfort Cerqueira (University of Lisbon)
“Seeing Souls: Wittgenstein and Cavell on the ‘Problem of Other Minds’”, Jônadas Techio (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
“Un Poète Maudit: Stanley Cavell and the Environmental Debate”, Tomaž Grušovnik (University of Primorska)
A Vida na História
... mas eu com o coração consciente
de quem só na história tem vida,
como poderei com pura paixão agir
se sei que a nossa história acabou?— PIER PAOLO PASOLINI, “As Cinzas de Gramsci”
Une communauté constitue
Il ne peut y avoir de connaissance sans une communauté de ceux qui la vivent [...] la communication est un fait qui ne se surajoute nullement à la réalité-humaine, mais la constitue.
— GEORGES BATAILLE
Sem Anos
Toute valeur n’entraîne pas la révolte, mais tout mouvement de révolte invoque tacitement une valeur.
— ALBERT CAMUS, “L’Homme révolté”
Diga-se
É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homemÉ preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora— MÁRIO CESARINY, “Exercício Espiritual”
A Warm, Burnished Elegy
As you plaited the harvest bow
Hands that aged round ash plants and cane sticks
You implicated the mellowed silence in you
In wheat that does not rust
But brightens as it tightens twist by twist
Into a knowable corona,
A throwaway love-knot of straw.
And lapped the spurs on a lifetime of gamecocks
Harked to their gift and worked with fine intent
Until your fingers moved somnambulant:
I tell and finger it like braille,
Gleaning the unsaid off the palpable, And if I spy into its golden loops
I see us walk between the railway slopes
Into an evening of long grass and midges,
Blue smoke straight up, old beds and ploughs in hedges,
An auction notice on an outhouse wall —
You with a harvest bow in your lapel, Me with the fishing rod, already homesick
For the big lift of these evenings, as your stick
Whacking the tip off weeds and bushes
Beats out of time, and beats, but flushes
Nothing: that original townland
Still tongue-tied in the straw tied by your hand. The end of art is peace
Could be the motto of this frail device
That I have pinned up on our deal dresser —
Like a drawn snare
Slipped lately by the spirit of the corn
Yet burnished by its passage, and still warm.— SEAMUS HEANEY, “The Harvest Bow”
Do Caos à Estrela
Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante. Eu vo-lo digo: tendes ainda um caos dentro de vós outros.
— FRIEDRICH NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra
Entre Nós e as Palavras
Entre nós e as palavras há metal fundente
Ao longo da muralha que habitamos
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar— MÁRIO CESARINY, “you are welcome to elsinore”
No Lado Esquerdo da Alma
preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
— MÁRIO CESARINY, Manual de Prestidigitação
Saltar, Correr
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.— MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, “Partida”
Um Lugar de Paixão
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.— HERBERTO HELDER, “Aos Amigos”
Dialogar
Dialogar é assumir que o sentido é uma tarefa colectiva.
— MANUEL GUSMÃO, Uma Razão Dialógica
De Mãos Dadas com os Perigos
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.— SOPHIA DE MELLO BREYNER, “Porque”
Pensando a Víctor Jara (2)
De nuevo quieren manchar
mi tierra con sangre obrera
los que hablan de libertad
y tienen las manos negras.Los que quieren dividir
a la madre de sus hijos
y quieren reconstruir
la cruz que arrastrara Cristo.— VÍCTOR JARA, “Vientos del pueblo”
Thinking of Víctor Jara (1)
[S]ome marxists are prepared to admit that some Christians have, personally, become Marxists precisely on the account of their Christian beliefs — not that is, in spite of them, but because of them. Thus, for example Camilo Torres, Paulo Freire, the Slant Catholics in the 1960s in England and many others. There is a minority of Christians who have come to believe that fidelity to their Christian beliefs entails and not merely permits that they accept a revolutionary socialist stance. And some of these people make very good Marxists indeed.
— DENYS TURNER, Marxism and Christianity
O Braço que a Ideia Pede
Às duas por três nascemos,
às duas por três morremos.
E a vida? Não a vivemos.Quero viver (deixai-nos rir!)
seria muito exigir...
Vida mental? Com certeza!
Vida por de trás da testa
será tudo o que nos resta?
Uma ideia é uma ideia
— e até parece nossa! —
mas quem viu uma andorinha
a puxar uma carroça?Se à ideia não se der
o braço que ela pedir,
a ideia, por melhor
que ela seja ou queira ser,
não será mais que bolor,
pão abstracto ou mulher
sem amor!Às duas por três nascemos,
às duas por três morremos.
E a vida? Não a vivemos.Neste reino de Pacheco
— do que era todo testa,
do que já nada dizia,
e só sorria, sorria,
do que nunca disse nada
a não ser prà galeria,
que também não o ouvia,
do que, por detrás da teste,
tinha a testa luzidia,
neste reino de Pacheco,
ó meus senhores que nos resta
senão ir aos maus costumes,
às redundâncias, bem-pensâncias,
com alfinetes e lumes,
fazer rebentar a besta,
pô-las de pernas pró ar?Por isso, aqui, acolá
tudo pode acontecer,
que as ideias saem fora
da testa de cada qual
para que a vida não seja
só mentira, só mental...— ALEXANDRE O’NEILL, “No Reino do Pacheco”
Sem Amos Nem Destino
Havia séculos
e eram florestas sobre florestas escritas.
O canto cantava: era o incêndio do ventofolheando a memória da terra essa maranha de raízes aéreas
que nasciam enterrando mais fundo as árvores anteriores;
essa teia nocturna de troncos e lianas, de ramos e folhas,
nervuras que os versos enervam irrespiráveis;
esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz
que atrasando-se recorta estas estranhas esculturas do tempo:
os poemas selvagenso máximo excesso de uma rosa aquática e frágil
sempre a nascer desfiladeiros e falésias, fendas, quebradas, ravinas
vulcões que deflagram em écrans sucessivosHavia séculos
e o cinema dos astros
acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas;
punha em música a infinita noite dos versos que longamente escutam
aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão
até estes anfiteatros que os desertos invadem.Havia séculos
e / atravessando as ruínas dessa terra quente,
as páginas de água dessa rosa alucinada / havia esse:
o comum de nós que dos seus se dividindo, verso a verso,
procura ainda alguém.
E assim era de novo o início.A grande migração das imagens — havia séculos —
desde há muito começara, desde sempre, já.
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidossem paz e sem lei, sem amos nem destino.
— MANUEL GUSMÃO, “Havia Séculos”
A Cultura como Meio e Fim
Mas nem só estas necessidades de ordem material impulsionaram sempre o homem; desde que a sua existência se encontrou suficientemente assegurada para não lhe ser necessário dedicar-lhe todos os seus momentos de atenção, o homem virou-se para a contemplação da natureza e dessa contemplação nasceu no seu espírito o sentido do belo, origem de todas as suas manifestações artísticas.
Por outro lado, ele depressa começou a viver em sociedade com os outros homens e a reconhecer a necessidade da cooperação com os seus semelhantes.
Essa associação teve a princípio como origem certamente um sentimento egoísta — tirar da colaboração com os outros homens o maior proveito possível para si próprio. Mas foi-se introduzindo lentamente nas relações sociais uma outra ideia — a de que cada um não deve utilizar as relações de sociedade unicamente com o objectivo de tirar daí interesse ou proveito próprio, deve também dar aos outros o seu esforço para os auxiliar. É o sentimento do belo introduzido nas relações sociais, dando ao homem objectivos de ordem moral.
O aperfeiçoamento constante dos meios de satisfação e desenvolvimento das necessidades, ideias e sentimentos, constitui a cultura, que no dizer de Karl Marx “compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem”.
A cultura é assim simultaneamente um meio e um fim.
— BENTO DE JESUS CARAÇA, “Conferência na Universidade Popular”
Sea of Revolution
O God! That one might read the book of fate,
And see the revolutions of the times
Make mountains level, and the continent
Weary of solid firmness, melt itself
Into the sea!— WILLIAM SHAKESPEARE, Henry IV
Forma de Vida
Forma de Vida é uma nova publicação online bimestral de literatura e ideias. Saiu agora o primeiro número que está disponível aqui.
Estas Mãos
Vês estas mãos? Mediram
a terra, separaram
os minerais e os cereais,
fizeram a paz e a guerra,
derrubaram as distâncias
de todos os mares e rios,
e, no entanto,
quando te percorrem a ti, pequena,
grão de trigo, andorinha,
não chegam para abarcar-te,
cansam-se alcançando
as palomas gémeas
que repousam ou voam no teu peito,
percorrem as distâncias das tuas pernas,
enrolam-se na luz da tua cintura.
Para mim és tesouro mais carregado
de imensidão que o mar e os seus racimos
e és branca e azul e extensa como
a terra na vindima.
Nesse território,
dos teus pés à tua fronte,
andando, andando, andando, eu passarei a vida.— PABLO NERUDA, “A Infinita”
Cultura e Humanidade
Mas o que não deve nem pode ser monopólio de uma elite, é a cultura; essa tem de reivindicar-se para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria, ditando a todo o momento a tonalidade geral da orientação às elites parciais.
— BENTO DE JESUS CARAÇA, A Cultura Integral do Indivíduo