Havia séculos
e eram florestas sobre florestas escritas.
O canto cantava: era o incêndio do ventofolheando a memória da terra essa maranha de raízes aéreas
que nasciam enterrando mais fundo as árvores anteriores;
essa teia nocturna de troncos e lianas, de ramos e folhas,
nervuras que os versos enervam irrespiráveis;
esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz
que atrasando-se recorta estas estranhas esculturas do tempo:
os poemas selvagenso máximo excesso de uma rosa aquática e frágil
sempre a nascer desfiladeiros e falésias, fendas, quebradas, ravinas
vulcões que deflagram em écrans sucessivosHavia séculos
e o cinema dos astros
acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas;
punha em música a infinita noite dos versos que longamente escutam
aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão
até estes anfiteatros que os desertos invadem.Havia séculos
e / atravessando as ruínas dessa terra quente,
as páginas de água dessa rosa alucinada / havia esse:
o comum de nós que dos seus se dividindo, verso a verso,
procura ainda alguém.
E assim era de novo o início.A grande migração das imagens — havia séculos —
desde há muito começara, desde sempre, já.
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidossem paz e sem lei, sem amos nem destino.
— MANUEL GUSMÃO, “Havia Séculos”
Sem Amos Nem Destino
21.03.2013