A Arte como Trabalho ou O Trabalho como Arte
Aqui fica o vídeo da minha intervenção no II Congresso Internacional “Marx em Maio”. Os registos das outras apresentações estão disponíveis no blogue do evento. Há muito a aprender com os trabalhos apresentados nos diferentes painéis deste relevante e oportuno encontro.
Fatidiviz
Que espécie de palavra é esperança
É da cor da cinza
Sabe a feno antigo depois da chuva
Opaca ao tacto como o muro alto e branco
Cheira a traineiras
À corda húmida depois da pesca
O ritmo oscila na clave
O acento entre sílabas que conspiram átonasNão vejo esperança na sintaxe
Uma apenas interjeição
e e a a
s, p, r, ç, corroem a esperança
Deixam-na sem fundamento ou raizO s mata a esperança
A acção chegou ao fim sem nunca ter começado
Silêncio regresso sussurro sossobrar
O p impede-a de subir e sonhar
Prende-a à porta e à pedra pauper et paucrum
Mas o r lembra-lhe os curros com seus r de reprimir
Manda-a descer pelo filtro
Que lhe desfibra os raios e retesa os aramesO n desliga o nó descobre-lhe a nudez
Corta-a pelo núcleo
Mostra-a caída na neve negada
Nada ninguém nunca noite
Mas é o ç que amarra a nau ao fundo
Nem vermelho nem negro nem c nem q
A palavra dobrando-se doce verga sorrindo
Açucarada com açucenas e açafatesEsperança deve escrever-se com f
Que dá origem ao fogo à fonte à força
Faz-lhe falta o t metálico e vibrado
Com a seiva e a consistência de
Talo timbre
Torno tuba e tronco
O d aumenta-lhe a razão
Demonstra deduz debate e duvidaEsperança só é eficaz com v
Onde reside a força e sopra o elemento
Onde a voz venta e vai veloz
Mas para que se erga no ar e voe
O z introduz-lhe o zip
Dá-lhe a fluidez do mercúrio
E a forma compacta da rosa
Duas vogais apenas para a esperança restaurada: a, iEm Fatidiviz ainda ecoa um r
Mas este agora é lógico
É o r de estrutura grupo e parte
Que liga para construir
Que regressa para libertar
E assim Fatidiviz é o que vence o Fado qualquer
Grego ou latino opondo-se ao fatídico
É o que tem o Fiat— M. S. LOURENÇO, Arte Combinatória
As Qualidades da Utopia
Uma utopia é mais ou menos o equivalente de uma possibilidade; o facto de uma possibilidade não ser uma realidade significa apenas que as circunstâncias com as quais a primeira está articulada num determinado momento a impedem de ser a segunda, porque de outra forma ela mais não seria do que uma impossibilidade. Se essa possibilidade for liberta das suas dependências e puder desenvolver-se, nasce a utopia. É um processo semelhante àquele que se verifica quando um investigador observa a transformação de um elemento num composto para daí tirar as suas conclusões. A utopia é a experiência na qual se observam a possibilidade de transformação de um elemento e os efeitos que ela provocaria naquele fenómeno composto a que chamamos vida.
— ROBERT MUSIL, O Homem Sem Qualidades
II Congresso Internacional “Marx em Maio”
Começa hoje o muito oportuno e relevante segundo Congresso Internacional Marx em Maio, em Lisboa, organizado pelo Grupo de Estudos Marxistas. A página do congresso contém, para além do programa que incluo em cima, vídeos, resumos das intervenções, e notas biográficas dos participantes.
Apresentarei amanhã no congresso uma comunicação com o título “A Arte como Trabalho ou O Trabalho como Arte”, integrada num painel sobre estética e marxismo, e que resumi assim:
Em 1924, o cineasta soviético Dziga Vertov respondia à revista Kino defendendo a destruição do conceito de arte que “protege uma casta inteira de pessoas privilegiadas”, que se vêem como “milagreiros”. No ano da morte de Lénine, Vertov combatia assim uma perspectiva que considerava ser contra-revolucionária e idealista, afirmando “que não há fronteira entre o trabalho artístico e não-artístico”. Esta investigação desenvolve estas sugestões, a partir da análise crítica, materialista e dialéctica, de Karl Marx (e Friedrich Engels) ao trabalho. O capitalismo reduz o trabalho a uma actividade instrumental e forçada, um meio de alienação. A transformação histórica e prática das relações de produção num processo de emancipação humana, tornam o trabalho numa forma de realização e desenvolvimento integral, criador e criativo.
Pájaro, flor, violín
Un pájaro vivía en mí.
Una flor viajaba en mi sangre.
Mi corazón era un violín.Quise o no quise. Pero a veces
me quisieron. También a mí
me alegraban: la primavera,
las manos juntas, lo feliz.¡Digo que el hombre debe serlo!
Aquí yace un pájaro.
Una flor.
Un violín.— JUAN GELMAN, “Epitafio”