An Exchange Between Nöel Carroll and Stanley Cavell

10.07.2010

Next week, I shall be in England to participate in the third Film-Philosophy conference. The event will be held at the University of Warwick from 15 to 17 July. This is abstract of my paper, “On Essentialism: Thoughts Between Nöel Carroll and Stanley Cavell”:

Nöel Carroll has been one of the most eloquent proponents of an anti-essentialist view of art, in particular, of cinema. He seems to think that Stanley Cavell holds an essentialist view of film, put forward in his foundational work, The World Viewed,[1] and developed in later essays and books. While Carroll admires Cavell’s philosophical readings of particular films, he also criticises his conception of film as essentially connected with photography. The aim of this paper is to provide some thoughts on this exchange between Carroll and Cavell, or more precisely, to compose a conversation between them based on their positions and what they entail. Perhaps their views are ultimately reconcilable.

Carroll rejects the photographic basis of film and instead proposes a definition of the works of the moving image (not moving pictures), an over-arching category that includes films. He avoids essentialism, but we may argue that so does Cavell in his characterisation of film as a succession of automatic world projections. As D. N. Rodowick rightly points out, this ontology of film does not assume an essentialism or teleology[2] insofar as it also claims that the possibilities of the medium cannot be determined in advance — that is, that they cannot be deduced from the medium because the medium is not a given. Cavell is then anti-essentialist in a Wittgensteinian sense, one that does not reject categories so much as defines them from similarities, family resemblances.[3] Therefore, this categorisation does not obscure salient differences between works. It instead invites us to notice them.

This is not to deny the differences between Carroll’s and Cavell’s ideas. They must be acknowledged, but their contributions can be thought of as complementary when all is said and done. They have different conceptions of medium, from simply materials to instruments, forms, and uses, as well. Carroll’s general definition comes from a narrow concept of medium, while Cavell’s restricted definition broadens what counts as media. The former tackles film from a theoretical approach, what we may call movies, the latter from an ordinary perspective, what we usually call movies.

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[1] Stanley Cavell, The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film, enlarged edn. (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1979).

[2] D. N. Rodowick, The Virtual Life of Film (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2007), 42.

[3] See Ludwig Wittgenstein, Philosophical Investigations [1953], 50th Anniversary edn., trans. G. E. M. Anscombe (Oxford: Blackwell, 2001), sect. 67.

Acknowledging and Feeling the Everyday

28.06.2010

The impulses of scholarship sometimes encourage a dissatisfaction with everyday existence. Perhaps this is because, at first sight, it seems too “obvious” (and necessarily not sufficiently technical or specialised); perhaps it is because the mundane does not declare its social importance in more directly objective public language (as political or ideological discourse aims to do); or perhaps matters of the everyday are simply too close to home. The everyday is avoided, therefore, because we find it difficult to establish the distance, the separateness, which would enable us to acknowledge it in significant or rewarding ways.[1]

While discussing Michael de Certeau’s The Practice of Everyday Life,[2] Andrew Klevan adds that Certeau’s vocabulary “tends to ignore the precise detail of everyday feeling, or the concrete, routine practice of life — such as waiting, or boredom, or writing a diary, or chatting at home, or taking a commuter train into town”.[3] He claims that approaches like Certeau’s reject everyday rhythms as experienced, as felt.[4] Klevan’s is instead a phenomenological approach to the everyday.

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[1] Andrew Klevan, Disclosure of the Everyday: Undramatic Achievement in Narrative Film (Trowbridge: Flicks Books, 2000), 4-5.

[2] Michael de Certeau, The Practice of Everyday Life, trans. Steven Rendall (London: University of California Press, 1992), 4-5.

[3] Klevan, Disclosure of the Everyday, 6-7, n. 11.

[4] Ibid., 7, n. 11.

Taste

08.04.2010

I am inclined to agree with Pierre Bordieu. Taste has more to do with social stratification than with aesthetic appreciation.

Seminars Around D. N. Rodowick

21.03.2010

I am coordinating a series of research seminars on D.N. Rodowick’s work at the Philosophy of Language Institute of the Nova University of Lisbon, where I am now a researcher in film and philosophy. This series is part of the research project “Film and Philosophy: Mapping an Encounter” and serves as preparation for Rodowick’s visit to the Faculty of Social and Human Sciences of the University and to the Institute from 12 to 14 May 2010.

23 Mar., 10 a.m. - 12 p.m.: “A Máquina do Tempo de Deleuze”, org. Susana Viegas

13 Apr. , 10 a.m. - 12 p.m.: “Ler o Figural”, org. Susana Nascimento

27 Apr., 10 a.m. - 12 p.m.: “A Vida Virtual do Cinema”, org. Sérgio Dias Branco

4 May, 10 a.m. - 12 p.m.: “Uma Elegia pela Teoria”, org. Dina Mendonça

11 May, 10 a.m. - 12 p.m.: “Imagens Residuais da Filosofia de Cinema de Gilles Deleuze”, org. Joana Pimenta

Stanley Cavell Meets the King of Pop

19.03.2010

Amir Khan takes Stanley Cavell’s comments on Fred Astaire as a starting point to approach Michael Jackson in an illuminating essay. Khan grapples with questions like these:

Then why dance? Is a Fred Astaire or Michael Jackson proto-walk a search for the ordinary? If so, then what need have we for extraordinary dance (or language) in the first place?

O Belo

13.01.2010

Relembrando João Bénard da Costa (1935-2009), recupero uma comunicação que ele apresentou no ciclo de conferências Ecce Homo que teve lugar na Sé Patriarcal de Lisboa em Maio de 2007 (via Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura):

Quando me sentei aqui e olhei à volta, pensei que estava numa situação paradoxal. Ou seja, vinha falar sobre o Belo, num sítio que nos impõe imediatamente o conceito de Beleza.

Este é um lugar de beleza. Se podemos secundarizar a Sé de Lisboa em relação a outras grandes catedrais românicas anteriores ou da mesma época, se podemos e devemos recordar todas as destruições, modificações, restauros que sofreu durante os tempos, nenhuma dessas contingências ou comparações diminui a beleza deste espaço.

E aqui começa a primeira pergunta ou o primeiro mistério. Porquê e a quê chamamos Belo?

A segunda pergunta que podemos fazer, associada a essa, é porque é que, não só na religião católica mas em praticamente todas as religiões, os templos, os lugares de oração, são — ou foram — privilegiadamente lugares de Beleza? Isto acontece no Oriente, no Ocidente, no Japão, na China, na Grécia, no Egipto, etc. Porquê a imediata associação da Beleza a um lugar onde se vai não para admirar uma coisa bela, mas para rezar, para entrar em diálogo com o transcendente, qualquer que seja o nome ou a forma de que esse transcendente se reveste.

Terceira pergunta. Esta associação, que sempre existiu, que perenemente existiu, é uma associação que não encontramos na própria tradição que a funda. Ou seja, se lermos os “Evangelhos”, os “Actos dos Apóstolos” ou as “Epístolas”, ou os outros textos do Novo Testamento, não há praticamente referências estéticas. Em nenhum momento, se nos diz, por exemplo, se Jesus Cristo era belo ou não era belo. E aí, começa a pôr-se uma questão complexa e apaixonante: Jesus Cristo, Deus feito Homem, podia ou não podia deixar de ser belo? Ninguém pode responder radicalmente sim ou não e não há nenhuma fonte histórica que nos diga se o era ou não era. Nem nenhum traço. Não sabemos se tinha os olhos azuis ou os cabelos loiros ou se, pelo contrário, os olhos eram pretos, e castanhos os cabelos. O mesmo se diga de qualquer outra figura da Sagrada Família ou dos Apóstolos. Não há descrições físicas. Fala-se de defeitos físicos, isso sim, mas para a gente anónima: o cego, o paralítico, o surdo, etc. Mas nunca se caracteriza ninguém em termos de beleza. Mesmo de uma figura como Maria Madalena, nunca é dito nada que nos possa fazer saber se era uma mulher bela ou o não era.

Uma excepção. É a conhecida passagem em que Cristo faz a famosa comparação entre os lírios do campo e as vestes do Rei Salomão: “Olhai os lírios do campo que não fiam nem tecem e nem Salomão em toda a sua glória se vestiu como eles“”. Cristo não fala concretamente em beleza, mas fala no que nela está implícito. Vejam como a beleza dos lírios do campo ultrapassa em muito a beleza da corte de Salomão que era, para os judeus, o rei que tinha tido o maior poder e maior riqueza, e em cuja corte tinha havido maior luxo. E nem Salomão, em toda a sua glória, conseguiu ter a beleza que existe na natureza, que existe nos lírios (nem sequer nos lírios cultivados, mas nos lírios do campo). E isto é dito como uma evidência. Não é possível desmentir este facto. Os lírios do campo são mais belos do que as vestes do Rei Salomão.

Todos estes exemplos apontam para a mesma ordem de mistério. Todos são evidentes ou nos parecem evidentes. Percebemo-los imediatamente, mas perguntamos imediatamente: Porquê? Porque é que um lugar como a Sé de Lisboa é Bela? Porque é que os templos sempre estiveram associados à ideia de Beleza? Porque é que há uma tal ausência de referências à Beleza nos Evangelhos? E, quando a achamos, ela refere-se não a uma beleza humana ou criada, não a uma obra de arte, mas refere-se a uma beleza natural, à beleza dos lírios do campo, à beleza de uma flor que cresce espontaneamente.

Eis a questão colocada sempre e ao longo dos tempos, em todas as meditações sobre o Belo e em todas as reflexões sobre o Belo, e a que o Jorge Silva Melo aludiu na intervenção precedente. O Belo é imutável, a Beleza é permanente? Se sim, como podemos abordar o conceito de Belo? Mas se não, a complexidade é a mesma.

Partamos do pressuposto que tudo é relativo. O que hoje é belo para nós deixará de o ser amanhã, mesmo que por amanhã entendamos daqui a muitos séculos. Duma pessoa que nós dizemos ser muito bela, o código de beleza muda com as modas, com os tempos e passado algum tempos já não o será. Mas ao mesmo tempo que isto dizemos, encontramos o seu desmentido permanente. Encontramos uma estátua grega num templo grego. Essa beleza que para nós se impõe ainda como ideal, foi contestada muitas vezes, foi transformada muitas vezes, mas continua a ser o mesmo ideal. E continua a impor-se quase como uma objectividade, como quando se diz uma boca bonita, um nariz bonito, uma paisagem bonita, um mar bonito e de repente este é um dado objectivo, um dado adquirido. E, ao mesmo tempo nós sabemos que esse adquirido, ao contrário dos outros valores transcendentais como o Bem ou a Verdade, é o valor mais ligado aos valores sensoriais.

O valor, por outro lado, mais ligado a qualquer coisa que podemos referir como o que Cristo disse a S. Pedro: “Não foi a carne nem o sangue quem to revelou, mas o meu Pai que está nos Céus.” Pensamos nisso quando encontramos esse conceito em crianças ou pessoas sem nenhuma educação. Como é que há pessoas que tem acesso imediato ao Belo? Que explicação racional há para dar?

Foi educação? Certamente não serei eu a negar o papel da educação artística que é importantíssimo, a educação do gosto. Mas há mais do que isso. Há qualquer coisa que não vem da educação. Há qualquer coisa que a ultrapassa e a que não é descabido dar o nome de Graça tal como existe no encontro entre duas pessoas, ou no encontro nosso com determinada paisagem, determinado livro, determinado quadro, determinado momento.

O Jorge Silva Melo contou muitas histórias. Eu contarei uma história que sempre me deixou bastante pensativo. Trata-se de uma criança, de sete ou oito anos, que está a ler Os Lusíadas. De repente, um adulto repara: fenómeno estranho, uma criança a ler Os Lusíadas, e diz-lhe com alguma ironia: “Então estás a gostar? Estás a perceber?” E a criança responde: “Eu não percebo nada mas isto é tão bonito.” Pode ser, como o Jorge Silva Melo dizia há pouco, que exista já um calculismo num miúdo munido de oportunismo, pois sabe que ficará bem visto com esta resposta. Mas pode ser qualquer coisa de completamente diferente. Pode ser que aquela criança esteja a dizer uma verdade profunda. A beleza impõe-se-lhe para além da compreensão. Ou, indo mesmo mais longe: a maravilha é a incompreensão.

Vou contar uma última história. Estava eu no Japão, num templo em Quioto. Um templo chamado da “Eterna Sabedoria”. Quando lá cheguei não pude esconder uma certa decepção. O templo pareceu-me bastante banal, bastante igual a outros que eu já tinha visto. Não que fosse feio, mas nada se me impôs imediatamente. Havia em frente um jardim que se chamava “Jardim do Eterno Nada” com dois pequenos montinhos de areia. Havia ali qualquer coisa de muito forte, mas que não correspondia à minha expectativa. Havia por lá um livrinho daqueles livrinhos de guias para turistas. Comecei a ler o livro e comecei a julgar perceber mais alguma coisa do que estava ali representado ou não representado. Tudo aquilo começou a fazer algum sentido para mim. Comecei a entusiasmar-me com o que estava a ver e, pouco a pouco, a aderir ao templo e a descobrir cada vez mais coisas no templo. Num canto, no chão do templo, estava sentado um monge budista. De vez em quando, olhava para mim. Eu estava visivelmente entusiasmado e ele, a certa altura, perguntou-me: “Então, está a gostar?” Eu disse-lhe: “Estou.” E contei-lhe: “Olhe ao princípio, quando cheguei, tive uma decepção. Não percebi bem isto, mas agora, com o tempo, e com este livro, e com estas explicações, já estou a começar a perceber e estou a gostar imenso.” E ele olhou-me (nunca mais me esqueceu esse olhar sem ironia nenhuma, nem sarcasmo, com uma clareza enorme) e disse-me: “Está aqui há uma hora e está a perceber. Pois eu venho aqui todos os dias, há vinte anos, passo aqui todo o dia e cada dia percebo menos.” É em momentos desses que se sente que a beleza é aquilo de que cada vez se percebe menos e não aquilo de que se percebe mais. Sem dúvida ajudam imenso as explicações. Tudo o que se faz hoje em museus, centros de arte, etc, tudo isso nos situa imenso. Mas o fundamental do encontro, é da ordem do mistério. É perfeitamente inexplicável nesse sentido.

Podem buscar-se muitas interpretações. E podem buscar-se ao longo da história, sobretudo da história da filosofia, inúmeras interrogações sobre um conceito que atravessou fundamentalmente a filosofia grega, que tanto se debruçou sobre o tema do Belo. Platão disse-nos que os primeiros sábios foram Homero e Hesíodo, ou seja, pôs no topo da sabedoria os poetas. Homero e Hesíodo teriam sido os primeiros sábios. E este sentido aparece muitas vezes ao longo da História. Recordo, por exemplo, como aflorado na intervenção inicial do Padre Tolentino de Mendonça, o discurso lapidar com que Sophia de Mello Breyner Andresen recebeu nos anos 60 o Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, fazendo uma associação profunda e fundamental entre o Belo e o Bem. ”A coisa mais antiga de que me lembro é de uma maçã” disse ela. E depois falou da beleza da maçã, da beleza de Homero e disse que essa experiência estética a tinha feito chegar a uma experiência ética. Quem não tem uma relação justa com as coisas, não a pode ter com os homens nem com o mundo, disse ela. E disse também: Quem tem uma relação justa com as coisas é forçosamente levado a tê-la com os homens.

Numa ordem e na outra estão os mesmos valores. É aquilo a que Heraclito chamou o devir. E é exactamente nesse devir que, sem ainda falar em três virtudes, na verdade, no bem e no belo, onde se engloba muitas vezes a justiça que depois os engloba a todos, somos levados ao mistério dessa beleza harmonizável ou não com tudo o resto. Há uma profunda verdade na afirmação de Sophia feita por outros tantos. Mas sentimos que ela não esgota tudo. Porque sabemos, e esse é um outro grande mistério, que houve quem tivesse ou parecesse ter uma relação justa com o Belo e tivesse a relação mais monstruosa com as pessoas e com o mundo. Aqueles célebres casos dos carrascos dos campos de concentração que iam para casa ouvir quintetos de Schubert, depois de acabarem de ter mandado matar crianças, adultos, velhos, etc. Estes valores podem não coincidir. Estes valores podem não ser exactos. E também o Jorge Silva Melo falou há pouco e recordou Baudelaire e as Flores do Mal, cujo centenário agora se comemora. A primeira grande ruptura, a primeira grande distinção entre o Belo e o Bem, entre uma Beleza ao serviço da harmonia, de adequação aos valores tradicionais a ela ligados, e uma arte que cada vez mais se ia separar desses valores.

Para Homero, o Oceano era o pai das coisas e seguiu-se essa filiação na metafísica do Ocidente, pelo menos de Heraclito até Leibniz. Era no devir, na transformação, (o mar é o que está sempre a fluir) que poderemos encontrar a melhor metáfora para o que simultaneamente nos pode dar um máximo de movimento e um máximo de repouso. Ou seja, que nos pode conturbar e emocionar profundamente e, ao mesmo tempo, nos pode dar uma profunda sensação de paz.

Quantas e quantas vezes eu tenho ouvido e eu próprio tenho dito, a frase: “Quando eu morrer gostaria de morrer ouvindo esta música.” Diz-se, e Jorge de Sena tem um soneto lindíssimo sobre isso, que o Papa Pio XII quis ouvir, morrendo, a 7.ª Sinfonia de Beethoven. Perguntar-se-à: No momento da morte haverá ainda tal apelo a coisas terrenas? Ou será que essa beleza não é da ordem das coisas terrenas mas da ordem que permite a passagem deste mundo a um outro mundo, do mundo sensível ao mundo inteligível? Por isso, como Parménides tantas vezes sublinhou, a arte não lhe parecia admitir, nem um princípio ou um termo. Na esfera inteligível, nem princípio nem termo podiam existir, porque ela é uma esfera perfeita. Inteiramente inteligível, em contradição profunda com o nosso mundo inteiramente sensível.

Platão, sobretudo no Fedro, mas também no Parménides, mantendo-se, no essencial, fiel ao seu mestre, admitiu, para o mundo sensível o heraclitianismo. Foi mais longe: Perguntou se se podia falar de outro belo que não fosse o belo deste mundo sensível. E essa é outra das interrogações profundas que nos atravessam: haverá beleza no outro mundo para quem acredita nele? As representações que dele temos levam sempre a supor uma beleza quase perfeita. Basta ver as inúmeras imagens ou pinturas feitas do Céu. Fra Angelico é um exemplo supremo. Ai parece reinar uma suprema harmonia, uma beleza quase perfeita. Mas nós podemos dizer: “Será que ainda há a possibilidade de um julgamento de beleza? Como será que todos estes valores que têm estado aqui em causa e que estão em causa para nós todos, a bondade, a verdade, podem coexistir num outro mundo, fora deste contexto sensível?”

Só se pode falar em bondade quando há maldade. Num mundo onde só haja bondade, perde-se o sentido do que é a própria bondade. A mesma coisa para o Belo. Mas será a mesma coisa? Ou seja as antinomias serão as mesmas? Henry Miller disse que não acreditava que houvesse arte num outro mundo. A obra de arte, dizia ele, é uma compensação ao terror que a vida inspira e, para lá deste mundo, não há que procurar essa compensação. Não tenho que me refugiar numa obra de arte. Ninguém concebe que no Céu, mesmo que o admitamos com espaço físico, alguém construa templos ou igrejas, ou pinte ou componha. Há quadros que no-lo mostram: anjos a tocar e a cantar. Mas sabemos que são metáforas, imagens, utilizadas para nós e que essas formas não são necessárias no mundo da perfeita paz e da perfeita alegria.

É devido à nossa existência sensível que não podemos conceber o que se chama o céu, sem as imagens, e sem as associar à perfeita bondade, perfeita verdade ou perfeita beleza. Mas existirão imagens fora deste nosso mundo sensível? No que em nós subsiste da tradição judaica (que nunca representou outros espaços) aceitamo-lo. Mas no que em nós persiste da tradição greco-romana, a dificuldade em aceder a um além, sem vida de formas, é mais ingrata. Os deuses gregos, podiam ser maus, cruéis. Podiam ser mentirosos ou astuciosos (é certo que quase sempre adquirindo a forma humana para o serem). Podiam ser até feios como Hefestos a quem foi dada como mulher, Afrodite, a deusa da beleza. Mas deuses e deusas rivalizavam entre si nestes atributos sensíveis e terrenos como bem o ilustra o famoso episódio do Pomo da Discórdia quando Hera, Afrodite e Atena pedem a um simples mortal, Páris, que diga, como na História da Branca de Neve, qual delas é a mais bela. Páris escolheu Afrodite e escolheu-a para sua perdição, pois foi essa escolha, como se sabe, que determinou a guerra de Tróia em que foi o vencido. No mundo sensível valeu-lhe o amor de Helena, a mais bela das mortais. Mas no mundo inteligível, a cólera dos deuses abateu-se sobre ele.

Mas Platão, que nos seus diálogos, sempre separou o mundo do devir do mundo do ser, admitiu na Filebo a permanência do devir no ser, a permanência de formas vivas ou obras de arte, aquilo a que mais tarde Aristóteles chamou substância em acto ou enteléquias. S. Tomás retomou essa ideia com os conceitos de perfeição, proporção e claridade. Como dizia o grande arquitecto Alberti, a beleza era uma tal disposição de partes que não podia ser adulterada, excepto para pior.

Não me cabe neste brevíssimo tempo falar das imensas teorias sobre o Belo mas uma delas teve um longo percurso. O Jorge Silva Melo já falou sobre ela e é a que se baseia no conceito de imitatio. A arte deve imitar a natureza e a natureza é bela porque é criação de Deus.

Também aqui nos havíamos de perguntar: o que é que nos leva a dizer que a natureza é bela? Porque nem sempre o é. Porque há paisagens feias e paisagens monótonas e há paisagens terríveis. Portanto não o é. E porque é que haverá uma imitação de uma ordem na outra quando exactamente a não vemos aplicada a nenhuma ordem?

É possível dizer-se que as formas são significantes. Mas Clive Bell respondeu tautologicamente a quem lhe perguntou quando é que as formas eram significantes. Quando são obras de arte. Só que podemos dizer exactamente o contrário. Só as obras de arte – por o serem – podem ser significantes.

A arte e o Belo não se confundem, e nada se confunde perante o nosso olhar a não ser a convicção, que nada consegue fazer abalar, que temos perante certas obras de arte, certas pessoas, certas paisagens. A beleza e só a beleza lhes dão sentido. Essa beleza que tão tardiamente amámos, como dizia Santo Agostinho, mas essa beleza cujo amor pode constituir, no fim, esse supremo lenitivo ou essa suprema resposta ao terror inspirado pela vida ou ao medo que a vida faz. Há um quadro português (um dos mais célebres da história da nossa pintura) que representa Cristo, o “Ecce Homo” no século XV. O momento em que Pilatos aponta Cristo à multidão e diz: “Eis o Homem!”

Há centenas de milhares de representações em todo o mundo desse momento. Mas não conheço outra em que Cristo tenha os olhos tapados, como neste “Ecce Homo” português cujo autor até se desconhece. Ou seja, um véu cobre o olhar. Só vemos dele a boca, a parte inferior do rosto. Não vemos os olhos. Como se naquele momento, o momento que é o momento da Sua condenação, o momento em que cumpre a Sua missão como Homem e como Filho de Deus, o sentido da vista fosse o sentido que Lhe é retirado. Deixa de ver. Já não pode ver. Para Ele, a beleza do mundo cerrou-se.

Pergunto para terminar: Haverá beleza separável do nosso profundo desejo de atingir outra coisa que nos faça ultrapassar a nossa própria dimensão e, atingindo-a, nos faça ser mais completamente?